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De Repente Num Domingo: Dançando no Escuro

"Dançando no Escuro", de Lars Von Trier, foi o primeiro filme capturado em sistema digital a ganhar a Palma de Ouro no Festival de Cannes, em 2000, o que acabou gerando uma repercussão mundial sobre o uso de câmeras digitais na produção de filmes.


Trier aproveitou-se de algumas características da estética do Dogma 95, como a câmera na mão, enquadramentos mais fechados, baixa definição imagética, dentre outros, e fez um contraponto com a linguagem cinematográfica clássica, principalmente a utilizada nos filmes norte-americanos, escolhendo o gênero musical, que já foi muito popular nos EUA, para potencializar ainda mais as imagens capturadas em digital, como opção estética, como elemento narrativo funcional.


"Dançando no Escuro" é, ao mesmo tempo, uma subversão e uma homenagem ao gênero musical, e Trier encontrou nas tecnologias digitais a parceria ideal para a construção estética visual do seu filme.



O filme aborda o drama de Selma (interpretada pela cantora Björk), uma imigrante tcheca que está perdendo sua visão devido a uma doença hereditária degenerativa. Para piorar sua situação, seu filho tem o mesmo problema. Selma, que trabalha como operária em uma fábrica, economiza tudo o que pode para pagar uma cirurgia para seu filho e evitar que ele tenha um destino impiedoso como o seu. A vida de Selma é dura, amarga, injusta.



As imagens do filme, com baixa definição e cores "apagadas", feitas com câmera na mão e em enquadramentos fechados, servem para realçar a visão que a própria Selma tem da vida real, além de reforçar sua dificuldade em enxergar. Com a câmera, Lars Von Trier promove uma invasão na intimidade de seus personagens, revelando seus pensamentos, muitas vezes impuros e maldosos, trazendo à tona verdades cruas e duras que, por vezes, podem gerar uma espécie de desconforto no espectador. Um olhar muito próximo que incomoda.


Mas nada parece incomodar Selma. Mesmo tendo uma vida sofrida, ela consegue ter a esperança de uma vida melhor para seu filho e é nisto que ela se apóia. Nos momentos em que a vida se torna cruel demais, beirando o insuportável, Selma, fã de filmes musicais, encontra na música e na imaginação uma válvula de escape. Sons corriqueiros do dia-a-dia, que passam desapercebidos para várias pessoas, começam a ganhar ritmo e harmonia aos ouvidos de Selma.



Enquanto ela fantasia, não são só os sons e sua vida que se transformam. A forma do filme também se modifica. A câmera não é mais trêmula, é segura, firme, precisa. As cores ganham vida, tornam-se mais brilhantes, mais fortes, mais realçadas. Os enquadramentos se abrem, várias pessoas entram em quadro. É como se o mundo de Selma se expandisse.


"Dançando no Escuro" não deixa de ser um filme musical. Entretanto, não é um filme musical convencional. Trier realizou um drama pesado, que retrata uma realidade cruel, sendo que a fantasia, representada no filme pela música e pela dança dos filmes musicais que Selma tanto idolatra, parece ser a única fuga, a única forma de manter a sanidade.



A escolha da cantora Björk, para interpretar o personagem Selma, também foi funcional para a estrutura narrativa do filme. Börk nasceu na Islândia e tanto sua personalidade e aparência quanto suas músicas são excêntricas, provocando um estranhamento ainda maior nesse "musical às avessas".


"Dançando no Escuro" apresenta vários números musicais, provenientes das fantasias de Selma, mas o primeiro deles só vai se realizar aos quase 40 minutos de filme. Lars Von Trier usou esse artifício para que o espectador se acostumasse com o mundo de Selma e sua estética "nua e crua", fazendo, assim, com que o "choque" entre a realidade e a fantasia se tornasse maior.



Para reforçar ainda mais as fugas da realidade de Selma, o diretor utilizou 100 câmeras para filmar os números musicais. Tal façanha só foi possível, dentro do orçamento que o filme dispunha, porque as câmeras eram digitais, sendo mais leves, baratas e de fácil manuseio. Tal técnica de filmagem seria praticamente inviável se tivesse que ser realizada com película, devido aos altos custos da câmera, da película e de todos os processos químicos pelos quais tem que passar para ser revelada. Assim, as 100 câmeras digitais proporcionaram ângulos impensáveis, imagens mágicas, como as próprias fantasias de Selma.


Com o uso das 100 câmeras para filmar os números musicais fantasiosos, não é só aos atores e dançarinos que Lars Von Trier dá total liberdade. Ele dá liberdade de expressão aos personagens do filme, principalmente à Selma. O personagem se liberta e canta o que sente, o que percebe e o que "vê" - ou, no caso, o que não vê.



Selma está sempre disposta a ver o que há de melhor na vida e nas pessoas e manifesta isto por meio das canções que inventa em sua cabeça. Selma sente-se livre e, quando, em determinado momento do filme, um dos personagens descobre que ela já não enxerga mais, Lars Von Trier faz o personagem responder, em forma de canção, que ela já vira tudo o que havia para ser visto. Nesse momento, imageticamente, a liberdade de Selma é representada através das imagens do personagem contra o céu - até então, pouco mostrado no filme (como se o céu fosse o único limite para Selma).


Com "Dançando no Escuro" e o "choque" entre o clássico e o moderno que provoca, por sua estrutura formal e narrativa, Lars Von Trier subverte e renova vários olhares, desde o olhar do espectador acostumado aos musicais hollywoodianos até o do que espera deste filme um novo Dogma 95.



Renova, de certa forma, até mesmo a maneira como as tecnologias digitais estão sendo empregadas no cinema contemporâneo, principalmente na indústria norte-americana, provando que estas podem ser utilizadas em filmes diferenciados, com temas pungentes que também conseguem atingir o grande público.

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