“E lançarei sobre ti coisas abomináveis, e envergonhar-te-ei, e pôr-te-ei como espetáculo“ (Naum 3:6). Não! Não Olhe! (Nope), o novo filme de Jordan Peele, já começa com essa frase de impacto, uma citação bíblica (Velho Testamento, porque né? bem sangrento e violento). Ou melhor, começa um pouco antes quando, ainda nos créditos iniciais, ouvimos um áudio, que não entendemos bem o que é, mas, pelas risadas e tom da conversa, parece ser uma esquete de uma sitcom. Depois a citação bíblica e depois uma cena de impacto. Peele já chega com tudo, mostrando logo (ou melhor, quase esfregando na nossa cara) o assunto que vai tratar ao longo das próximas 2 horas. Mas, um pouco diferente do que fez em Get Out! e Us, em Nope a mensagem está diluída em ainda mais camadas do filme, permitindo vários níveis de leitura. O que, particularmente, amamos.
A camada mais exterior é até bem simples, uma ficção científica como outras que já vimos por ai: dois irmãos, donos de um rancho, que criam e treinam cavalos para serem usados em produções de Hollywood que, enquanto lidam com a morte súbita (e suspeita), do patriarca da família, deparam-se com uma terrível ameaça que paira sobre o céu, bem acima da sua propriedade e regiões próximas. Aqui, inclusive, várias pessoas já associam Nope à Sinais (Signs, 2002) de M. Night Shyamalan: família, fazenda, extraterrestres, como lidar com isso, suspense. Mas, além dessa identificação até meio óbvia (para quem assistiu a ambos os filmes), o filme de Peele se afasta do de Shyamalan de diversas formas, inclusive nas questões raciais, que fazem com que ter e manter uma fazenda de família seja bem diferente quando uma delas é branca (Sinais) e a outra é negra (Nope). A partir dessa premissa inicial, mais e mais camadas são construídas ao longo do filme e, confessamos, não sabemos nem se conseguimos ter consciência de todas ela, por falta de referenciais em determinados assuntos, como a própria questão racial por exemplo, apenas mencionada acima em um dos pontos do filme (o enredo inteiro é permeado por questões que remetem ao racismo).
Mas, algumas coisas são claras. Como a citação inicial já nos conta, o filme é uma crítica severa à sociedade atual que vive pelo próximo clique. Pela próxima imagem capturada. Viralizar nas Redes Sociais. A super exposição. O entretenimento levado às máximas consequências. O sucesso acima de qualquer coisa. A perseguição pelos 15 minutos de fama (digna de aparição na Oprah). A ameaça não é uma nave espacial (um veículo, uma ferramenta). É um animal, um ser vivo que devora, por um orifício redondo (que nos remete à lente de uma câmera), que tritura suas presas no processo. A metáfora está ai, para quem quiser entende-la. Em determinado momento do filme, por exemplo, vemos que o “processo” do ser de capturar suas presas, assemelha-se bastante ao zoom que uma câmera dá. E as vítimas ficam ali estatísticas, olhando para aquele grande “olho”. Não é assim que fazemos quando vamos ser fotografados? O personagem principal, Interpretado pelo excelente Daniel Kaluuya, chama-se OJ, em uma clara e óbvia referências ao atleta (e criminoso) que teve seu julgamento transformado em circo midiático. E o que dizer do repórter do TMZ, que aparece no momento mais tenso do filme? Personagem totalmente sem noção, preocupado apenas com o grande furo, em mostrar a novidade antes de qualquer outra pessoa. E de forma sensacionalista, obviamente. A questão grotesca da super exposição midiática e das consequências que a mesma pode acarretar também está escancarada na história da sitcom que ouvimos, lá no início do filme, e que depois temos a oportunidade de ver por completo, de forma bem chocante e impactante.
Peele também fala o tempo todo de Cinema, em um trabalho magistral de metalinguagem. Desde o resgate - no mínimo impressionante - do que teriam sido as primeiras imagens em movimento (um cavalo correndo, sendo conduzido por um jóquei, negro), passando por todas as referências aos filmes de faroeste (inclusive presente também na trilha sonora e com direito até a uma cena de duelo), até a figura do diretor de fotografia que é capaz de “filmar o impossível” e usa uma câmera manual, com película. Ah! E os momentos de auge dos personagens principais: ele, um caubói de respeito, nos velhos moldes. Ela, em uma versão mais moderna, que monta em uma moto e não em um cavalo (e, para delírio dos fãs, reproduz uma cena de Akira, animação japonesa).
Poderíamos ficar muito tempo aqui listando mais e mais camadas de Nope, mas a verdade é que precisamos assistir de novo e digerir mais. Ainda ficou aquela sensação de que algo passou batido. Ou, como diz a Bel, é um filme que também precisa ser sentido, não apenas entendido. Uma coisa é fato: nada ali é por acaso. Não consideramos o melhor filme de Jordan Peele (Get Out! continua sendo imbatível). Mas arriscamos dizer que é, até o momento, seu trabalho mais complexo.